Palavras novas e velhas

domingo, 18 de outubro de 2009

Eleutério

Na pesada noite do mês da recolheita os insectos latejavam arredor das luzes como borboletas entolecidas por um passageiro sol de volfrámio. Por baixo os transeuntes caminhavam polo passeio em mangas de camisa alheios aos irritantes rigores dum ainda escorregadiço inverno. Os carros que por vezes abafavam o silêncio ocultavam o rechouchio morno e estridente dos grilos no moinho da Alameda e da campia estrelada do firmamento descia um cheiro indelével a terra esfrangulhada polos rigores do calor. Eram os dias de apanhar as patacas e nas ribeiras repintavam os ácios que ventavam a vindima com o seu mouro traje de madurez.
Na vila, o caminhar rejo e ríspido do Eleutério acochava as matinaçons vitais dum home feito velho antes de tempo. Era o tempo das patacas; e com elas no palhar cavilava no jeito de dar pago o crédito contraído para pagar a quota láctea. Seu pai trabalhara as veigas farturentas do Asma, coma seu avô. Nasceram e morreram com o espinhaço dobrado e a sacha na mao, regando as leiras com a suor dos anos e da secular experiência camponesa acumulada. Seu avô casara e criara a sua fruge com quatro vacas. Era umha casa boa, sempre fora. Agora o Eleutério com mais de vinte vivia sob a presença constante do embargo, tenebrosa espada de Damocles no menos comum dos mercados. Na noite latejavam os insectos e os pensamentos iluviazavam-se num tolo remoinho. Os grilos calárom e o croar dos sapos perdia-se no rebumbio atolado do devalar da vila. “O velho e o sapo”.
O lugar, noutra hora inçado de gente e casas, era umha sombra do que fora, um ermo em que as silvas lhe ganhavam a batalha aos foucinhos. As maos dos velhos aferravam-se aos caiados como a vida e aguardavam nas solainas e nos corredores a chamada entusiasta da Terra. Os nenos extinguiram-se como os carambelos empoleirados as telhas nos rigores invernais. As casas figeram-se velhas por vez primeira em séculos e as janelas cediam com os teitos e as paredes. Nada é igual a nada. Os grilos já nom cantavam no triste esmorecer do lugar porque nom havia pequenos para í-los tirar das suas tobeiras com umha palhinha. Os ecos da malha e das estivadas perderam-se para sempre mais alô do mundo dos homes.
Eleutério entrou a outro bar e recuncou com a soidade dos vencidos na batalha dum mundo esmorecido. As jugadas foram mudadas polos tractores e os homes polo monte e o abandono. O lugar morria e ele sabia que nom poderia sustentar mais aquela morada naquelas condiçons. “Todo mortal”, todo mortal. Se el nom fosse um mortal correria polos bacelos com as estrelas na procura de bágoas candentes de Sam Lourenço e receitaria-lhe às suas inquedanças meio ferrado de pam ferrado, dous de pam panado e muitas sopas de burro cansado. “Burro cansado blues, blues del burro cansado”. Se el nom fosse mortal aguardaria impertérrito um novo florescer das uzes, os codessos e os carpaços no monte da Purreira e enxergaria os campos do Alto de Ramos na procura de lebres e coelhos, esculcando os seus tovos no prado da Coelheira. Se nunca fora morrer e o tempo nom fora mais ca o devalar das estaçons, aprenderia de corrido o nome de todos os agros, morteiros, lamas, bacelos, veigas, prados, passares, devesas, pinheirais e lugares da comarca; o nome de todas as casas, dos vivos, dos mortos que já ninguém recorda: Eleutério, filho de Aguenor, neto de Martinho, filho e pai de gandeiros, o último da caste campesinha dum reino que esmorece por volta do século XXI, porque já nom é deste mundo. Guerreiro sem saga nem fuga, apenas com um JB.
Eleutério se nom for mortal, qual Prometeu, ergueria umha escada rumo ao céu e apanharia estrelinhas nas alboradas para retelhar as casas dos pobres. Levaria-lhes ao Olimpo codelas e pam duro, descendo com os manjares da alegria, a esperança e o futuro. Tende por certo que o Eleutério, se nom fora mortal, até lhe tiraria a venda a justiça dos olhos, para que vira como a sua balança leva desequilibrada mais anos ca romana do demo.
Porém o Eleutério é humano, doído polos golpes da vida, doente por safar-se de ver um fim que os seus olhos nom aturariam. “Onde esteja o teu tesouro, lá está o teu coraçom” e no abrente dos desejos e a esperança refresca-se dia-a-dia o coraçom, até que a fonte seca e murcha, o musgo desaparece e as rás, os cágados e os tritons voam com as andorinhas. Já nom hai crianças que vaiam pescar troitas entre as oucas nem moças para guindá-los nos passares ao rio, já nom hai vizinhos para buscar a auga para a Caleja no verao. Já nom hai futuro nem esperança para o lugar e umha “noite de vorazes sombras” baixa desde os castelos dos dias de treboada ao compás do vento do norte, o cortante Sarandom da natureza erma e morta, soterrada sob a torada de neve na espera dumha raiola de sol, dumha loaira. “Arrabaldo do Norte”.
Cai a névoa sobre a noite na vila e os sapatos do Eleutério vam tastarilhando ao compás do vinho mouro. “Viver e ir morrendo”, no campo sobretodo. Cairá a casa. Os valados. O palheiro. O estábulo. Que será dos eidos sem o alouminho do trabalho? Mas, o que mais lhe dói é a família que tem de deixar, porque é mortal, e as vaquinhas com os olhos atenáceos aguardando a oferecer-lhe o ouro branco dos seus ubres. Que será dum povo que se esqueceu de si próprio no meio do barulho de afastadas falas e modas de oco pedigrí? Tanto tem Eleutério, ao cabo todos sabemos que o que ardeu queimou-se e que o carvalho ou endireita de novo ou jamais o fai. O mundo dá muitas voltas e o centeio quiçais volva aos montes, e os tojos volverám estrar-se para logo semear as cortes com eles. Tanto tem, todo mortal. “Na ponte sobre o rio Asma” chuspiu com a raiva e a carrage e o Eleutério e a noite, lene e mansa coma um boi, ficárom na intimidade. O Eleutério ao cabo compreendeu despois de tanto tempo que só recebera de seus pais umha herança: o nome e a vida que o sustentava. De seu agora só tinha a vida, umha calaça, umha carga para outros. Eleutério renegou de ser Eleutério e com o punho fechado guindou-se ao rio. Eleutério é hoje memória e tenho fé em que nalgum recuncho do universo, onde nom haja homes e só haja justiça, nasceu umha estrela de cándida e eterna labareda. Permitide-me, homes e mulheres de ciência, que a baptice antes de que vós a descubrades com os vossos utilíssimos saberes: poria-lhe Eleutério, mas como lá nom hai homes, chamarei-lhe simplesmente LIBERDADE. “Deica logo Eleutério”.


1 comentário:

Xan disse...

Eleutério podía ser a metáfora dunha Galiza que esmorece, un País que se suicida porque sofre ás embestidas das crises, porque se lle nega o futuro os seus sectores productivos porque non ten órganos de seu para combatilo. Eleutério-Galiza sofre, ve como se desangra o seu mundo pero prefire o suicidio antes de apostar por un país que sea dono de si, que poida tomar decisión para defenderse e non sea un rehén cautivo de outros territorios(unha colonia)