Palavras novas e velhas

quinta-feira, 24 de março de 2011

"Multiculturalismo" e neolíngua, até quando?


Umha achega interessante sobre o multiculturalismo, que Merkel via fracassado recentemente, vem da mao de Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant num artigo  intitulado"Una nueva vulgata planetaria: la lengua franca de la revolución neoliberal" e que nos lembra poderosamente à neo-língua orwelliana brilhantemente descrita no romance 1984. O artigo em questom foi escrito no cabo do século XX e começos do século XXI e ainda nom advertia a queda da hegemonia norte-americana e, com ela, a queda da primazia absoluta de Ocidente e a apertura dumha etapa de caos sistémico. Porém nom é disso do que queria falar agora.

Simplesmente a minha vontade é partilhar algum dos aspectos debulhados sobre "pensares" dos autores de A miséria do mundo e de Os cárceres da miséria neste artigo. Duas obras que cito porque lembram a aquela dialéctica entre Marx e Proudhom da Filosofia da miséria e da Miséria da filosofia

A violência simbólica, tam naturalizada e arraigada que já nom é reconhecida como tal, é segundo Bourdieu umha forma profunda de dominaçom. Lá reside a eficácia da linguagem ultraliberal. Estados Unidos "mundializa" a sua realidade pós-keinesiana, manifesta na ssuas políticas económicas e sociais e também nas suas polémicas universitárias. (...) Umha extranha neolíngua: "mundializaçom" e "flexibilidade"; "governabilidade" e "empregabilidade", "underclass" e "exclussom"; " nova economia" e "toleráncia cero"; "comunitarisomo", "multiculturalismo" e os seus coirmaos "pós-modernos", etnicidade, minoria, identidade, fragmentarizaçom, etc.
Fora de todo isto ficam termos como capitalismo, classe, exploraçom, dominaçom, desigualdade, etc. Estamos, já que logo em presença dum imperialismo simbólico onde em nome da "modernizaçom" se ceifárom desde a década de setenta conquistas sociais e económicas que custaram cem anos de luitas socias. Bourdieu identifica claramente umha forte violência simbólica neste imperialismo cultural baseado na imposiçom dumha comunicaçom forçada através de poderosos altifalantes - os mídia- que imponhem a sua versom dos factos e a dominaçom. Nom é por acaso que se universalizam os particularismos vencelhados com umha experiência histórica singualar, tentando que sejam irreconhecíveis como tais -ou seja etnicamente neutros- e reconhecíveis no entanto como universais.

Para este fim som muito importantes as instáncias de governança global tais como o Banco Mundial, a Comissom europeia, a OCDE, think tanks (como o Manhattan Institute de Nova Iorque, o Adam Smith insititute de Londres, a Foundation Saint-Simon de Paris, a Deutsche Bank Fundation de Francoforte, a FAES de Madrid e assim seguido), fundaçons de filantropia, escolas do poder (London School of Economics em Inglaterra, Harvard Kennedy School of Government nos EUA, Institut d'Etudes Politiques na França...) e, em fim, a grande mídia. Em definitiva, falamos do binómio político-mediático produtor dessa nova língua franca e universal a neolíngua do pensamento totalitário ultraliberal. 

Boa parte da esquerda, também no artigo que serve de base a esta postagem, felizmente fala dumha sociedade estadounidense "da era pós-fordista e pós-keinesiana". Também aqui há desorientaçom e impostura intelectual ao confundir-se a sintomatologia do doente com a causa da doença, ou seja, a contrarrevoluçom ultraliberal iniciada nos setenta como fugida para adiante - perante a queda da taxa de ganho e outros factores que agora nom entrarei a analisar- dentro do beco sem saída do longo declínio que conduziu à crise da hegemonia (que Beiras situa em 1973) e ao caos sistémico do sistema-mundo capitalista actual (iniciado com a grande crise de 2008 equivalente a de 1873 que marcou o devalo da hegemonia británica. Para recuperar a taxa de ganho recorre-se a umha financiarizaçom extrema da economia (cujas bolhas produzem depresons profundas, recesons, estagflagçons e, em definitiva, activam um rodopio infernalque se retroalimenta a si próprio); ao desmantelamento do welfare state (educaçom, sanidade, aposentadorias, etc.), que era o pacto entre capital e trabalho estabelecido após 1945 na procura da pax social e a contençom do "comunismo"; hipercrescimento do estado penal - aqui Wacquant sentou cátedra-; esfarelamento do movimento sindical, da negociaçom colectiva e da autoorganizaçom dos trabalhadores (do que se deriva maior  desemprego, multiplicaçom da exploraçom, e da autoexploraçom, menores ordenados e maiores desigualdades entre operários) und so weiter.

Nesta cojuntura, Bourdieu e Wacquant identificam dous termos chave para a neolíngua que som bem familiares para qualquer pessoa que decida hoje enfrontar-se à docência. Falamos, como nom, do "multiculturalismo" e da "mundializaçom" ou "globalizaçom" na escola anglo-usamericana.

Quanto ao primeiro:

Este termo foi importado a Europa para designar o pluralismo cultural na esfera cívica [na sociedade civil], em tanto que nos EUA remete para - no mesmo movimento que a oculta- a contínua exclusom dos negros e a crise da mitologia nacional do "american dream" de "oportunidades para todos"; essa crise é correlativa à falência que afecta o sistema de ensinança pública em momento em que a competência polo capital cultural se intensifica [assim como a compotência intercapitalista que trai consigo a queda da taxa de ganho] e as desigualdades de classe aumentam de maneira vertiginosa.

O adjectivo tende um véu sobre essa crise, confinando-a artificiosamente ao microcosmos universitário e exprimindo-a num registo ostensivelmente "étnico"; mas, na realidade, a sua verdadeira cerna nom é o reconhecimento das culturas marginalizadas polos cánones académicos, mas tamém o aceso aos instrumentos de (re)produçom das classes médias e superior - como a universidade- num contexto de retirada activa e massiva do Estado.

O "multiculturalismo" estadounidense nom é nem um conceito, nem umha teoria, nem um movimento social ou político, embora pretenda se todas essas cousas à vez. É um discurso-pantalla (...). É, aliás, um discurso estadounidense - a pesares de que se pensa e se apresenta como universal (...).

Ou seja, que "o multiculturalismo" leva a todos os lugares aonde se exporta esses três vícios do pensamento nacional estadounidense que som: a) o "grupismo", que cousifica as divisons sociais canonizadas pola burocracia estatal como princípio de conhecimento e de vindicaçom política; b) o populismo, que substitue a análise das estruturas e dos mecanismos de dominaçom pola celebraçom da cultura dos dominados e dos seu "ponto de vista", elevado ao rango de proto-teoria fundamental; c) o moralismo, que ao obstaculizar umha análise materialista racional do mundo social e económico, condena a um debate sem fim nem efeitos sobre o necessário "reconhecimento das identidades", quando na triste realidade de todos os dias o problema nom se situa para nada nesse nível. (...) Dúzias de milhares de crianças das classes e etnias dominadas som expulsas das escolas primárias por falha de vagas (25.000 este ano [naquela altura entenda-se] apenas na cidade de Los Ángeles); e só um de cada dez jovens procedentes de moradias com ingresos inferiores a 15.000 dólares anuais accede à universidade, contra 94% dos filhos de famílias cujos ingresos anuais superam os 100.000 dólares.

No tocante à "globalizaçom":

Poderia fazer-se a mesma demonstraçom a respeito da noçom fortemente polesémica de "mundializaçom". O resultado - se nom a funçom- desta noçom é vestir de ecumenismo cultural ou de fatalismo económico os efeitos do imperialismo estadounidense (...).

[...]

(...) a colonizaçom mental que se opera através da difusom destes conceitos apenas pode levar a umha espécie de "consenso de Washington" geralizado e até espontáneo, como se pode ver hoje em matéria de economia, de filantropia ou de gestom da ensinança- Esse duplo discurso baseado na crença remeda a ciência, invistindo o fantasma social dominante com a apariencia de razom (...).

Em definitiva, o imperialismo ultraliberal realiza-se intelectualmente num pensamento único onde emergem duas novas figuras do produtor cultural. A primeira dela som os os think tanks, que elaboram documentos de alto conteúdo técnico [como os que os empresários espanhóis apresentam cada pouco a Zapatero ou a El-rei], redactados na medida do possível em linguagem económica e matemática. Depois venhem os "todólogos", tránsfugas do mundo universitário feliz ao serviço dos dominadores. A missom destes é dar forma académica aos projectos políticos na nova aristocracia financeira do estado e do capital. Toda umha neolíngua que fai que os gendarmes da bancocracia podam viver tranqüilos enquanto alienam os povos de toda a parte. A neolíngua é o Pangloss do poder, ou seja, o Cándido que descrevera em 1759 Voltaire; o cidadao alienado incapaz de render-se às evidências mais indiscutíveis e ainda mais inerte para indignar-se e reagir. Écrasez l'infâme!

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