Palavras novas e velhas

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Carta a mamai

«Até que nom tenham consciência da sua força, nom se rebelarám, e até despois de ter-se rebelado, nom serám conscientes. Este é o problema», George Orwell, Nineteen Eighty Four.

Hoje pola manhá, quando abrim a janela bateu de imediato como o ruído dos carros da sua rua e umha alfa de calor entrou polo quarto invadindo-o todo, pesada e abafante. Coma umha lousa apoderá-se de mim este tempo seco de intenso recendo a asfalto que me fai perder quase a cordura. Hoje, quando noto que se achega o tempo de procurar no céu o que nom encontro na Terra, dirijo-che estas palavras de despedida para que saibas que, ainda que nunca mais voltemos a ver-nos porque já nom existiremos nem ti e eu despois de hoje, sempre te levarei comigo e aguardo poder finar com o teu nome nos beiços ou, quando menos, mal-dizendo aos que nos hoje, definitivamente, nos erguêrom por novos vieiros de liberdade tutelada.

Lembro, nom sei porque nesta hora me vem à caneta, que distinta era a aldeia da minha infáncia e da tua maternidade desta cidade de estridências. Lá nom se ouvia o martelo das obras nem os carros zoavam umha e outra vez o seu bem compassado e monótono fungar a máquina, a civilizaçom do progresso na costa que já nom é verdescente. Lá, nos lugares da Purreira só entravam por este tempo os aromas a erva misturados com a sequedade da terra que traia reverberaçons olfactivas do obscuro arume arpado dos pinheiros. Disso fazia, quando menos, mas de vinte anos se é que nós, coitados, podemos medir realmente o tempo.

Vinhera para a cidade justo no tránsito entre criança e mulher, um tránsito biológico e trágico. Quando seu pai morrera, pouco tempo após aquelas horas amargas, sua mai tomara a decisom de que só escapando do passado poderiam sandar aquela dor, mas as duas sabiam que o passado sempre volvem e que os cadavéricos rostos dos hereges e dos judeus som agora rostos pretos ou palestinos. Nom, mamai. Nom fora umha vida nova, nem sei se poder dizer que melhor. Nengumha vida se constrói de cero e nengumha se pode viver duas vezes. Um é o melhor que outros lhe deixam ser e nem sempre está contente e conforme quando se olha no espelho da consciência. Por isso, na civilizaçom do progresso a inconsciência fai-nos livres, ou quase-livres já que quase-somos e quase-pensamos. Deveriamos ser livres, coma os paxaros, para podermos ser e saber que somos, mas tam só somos o que as regras do bem-pensar nos deixam ser e as regras, mamá, nunca as determinamos nós, nem papai... nem deus fixa as regras dos homes se é que fixa algo deste o seu alonjado escano azul. Na civilizaçom do progresso e as liberdades, assi, em plural, hai que apor-lhe valados à liberdade para delimitar bem o que som as quase-liberdades. Rematarám argalhando algumha máquina que o faga e alimentaram-na com energias alternativas salvando o home e a natureza. Quiçais, e só quiçais mamai, acabem inventando umha outra, pequena e arteira, para apagar dos nossos cérebros o passado e criar assí vidas novas e bem-pensantes que contribuam para um mundo onde nom haja diferenças entre mal-pensantes e bem-pensantes; apenas entre bem-pensantes grossos e bem-pensantes famintos. Porque na civilizaçom do progresso todos pensaremos o que eles querem e falaremos o seu mesmo idioma. E seremos, definitivamente, o que eles nos deixam, a deus graças (ou melhor nom misturá-lo nisto) ser.

Devemos apreender aginha as vantages de esquecer-nos de ter que descobrir e configurar quem somos, delegaremos essa fastidiosa e aborrecida tarefa noutros, os bífidos paladinos da liberdade, mas nom cada quatro anos, senom vitaliciamente e, assí todo será moito mais levadeiro. O ar carregado e afumado volverá cheirar-no mais umha vez a flores e teremos liberdade condicional e felicidade perpetua. Todo sob a exígua fiança de nom sermos nós próprios, de ter passado, presente e futuro de nosso. Mamai, quando a hora chegue, mais cedo ca tarde, já nom sentiremos a papai desde a última revolta do caminho da Bargela nem virám nos uns de Março as tuas miradas apenadas ao retrato do avô, porque em nós terá-se apagado o sotaque desta fala do país da Purreira, «esta fala mal-dita que querem tornar maldita», como dizia o evangelista José Saramago. O que noutra hora fora o Reino de Tagen Ata, tam bem descrito polo historiador Ferrim, nom passa hoje dum ermo. Desde que os godos transpassárom a cidade do Corpo Santo, os vizinhos mais umha vez nom acudírom, e colonizárom Vila Santa da Estrela, a cidade de Pedra, e o monte Faro, o monte popular (onde «fui eu madre em romaria» com os corvos e as gaivotas); desde que o derradeiro José Bastida deitou o seu definitivo alento, mais um finíssimo suspiro de quase-independência (em forma de quase-autogoverno baptizada como autonomia ou café para todos) do que um berro forte e colectivo dos antigos séculos, somos os últimos dum passado que devemos esquecer para entrar na civilizaçom do progresso.

Hoje choramos, mamai, e lembramos o avô e a todos os nossos que se fôrom. Os velhos perfumes já nos som impossíveis de evocar no nosso cérebro, porque a televisom e eles dim-nos como devemos ser, mas a televisom ainda é inodora. Talvez com umha máquina ou umha lei Antialgo se consiga que junto a agradável língua goda cheguem o cheiro da fame, da guerra, da morte, da podrémia e das mentiras que fam de colunas dumha orde social perpetua per seculum seculorum.

Mamai, agora que neste caderno deito as últimas palavras desta língua que a história nos deu por ventura primeiro e como maldiçom despois, despido-me dizendo-che que te guardei nos meus beiços até que já nom podia viver mais assí, porque umha nom pode hipotecar-se polo passado quanto o passado nom pode volver desipotecar-te, e na civilizaçom do progresso nom hai sítio para as raízes porque todo vai moi apressa e o sintético nem dá alergia nem hai que plantá-lo coma a árvore de Natal. Lembras o primeiro pinheiro de plástico do lugar que papai trouxera da Terra Ancha? Coma o que usavam os godos. Nom hai já tempo para plantar árvores de Natal. Se acaso eucaliptos. E pergunto-me se até os esquios terám deixado de esparger landras, como nos divirtiamos olhando para eles. A nossa fala foi tamém coma umha belota que inçou e cresceu aos poucos, mas nom valia para o progresso porque nunca entrou no mercado de valores, na língua do país da Purreira nunca se escrevêrom as contribuiçons só faixas e cartazes que o progresso punha a disposiçom dos nossos bárbaros devanceiros, para que deixassem de sê-lo, para que entenderam que devia um ser e para quem e para compreender como teriam de fazer para correr mais a mais polas estradas de tijolo. Tamém para as línguas deve haver livre mercado e nas crises, polo bem nosso, dos deserdados, dos indígenas de Europa, deve haver umha concentraçom do capital cultural numha poucas culturas, para ser mais eficientes e chegar ao número máximo de consumidores no mínimo tempo possível, reconduzindo assí aos mal-pensantes. Destruir para reconstruir. Tamém o etnocídio é umha guerra, mas é surda e os que a padecem até podem nom vê-la porque é incolora, inodora e insípida e, daquela, isso é progresso porque é natural, naturalmente natural, coma a auga que fervia nas fervenças dos rios de antes, mamais, nos que os entregos se submergiam nos séculos passados e que hoje o progresso converteu em formosas piscinas de formigom.

Hoje mamaínha sinto ter tamém que deixar eu de falar a língua da Purreira porque quero ser Goda, compreendê-los e nom odiá-los, e viver sem que me perguntem de onde som, porque falo assí ou directamente me tomem por pampo ou me olhem com lástima. Sinto-o, e coma Boabdil, choraremos como mulheres o que tampouco soubérom defender os homes, se é que na civilizaçom do futuro ainda hai homes e mulheres para além do homo industrialis.

Nom será umha nova vida, a que quando finou papai quigemos sonhar poder começar afogando a memória em ruído e em futuro. Sabes que nom será para mim, a genuinamente derradeira, umha nova vida, porque «nunca haverá ninguém coma nós», tam só um ponto e seguido na história do progresso e o ponto final dumha traiçom colectivo ao passado e à memória, mas decatei-me de que nom podo deixar de ser o que eles querem que sejam. E melhor crer-se igual aos demais ainda que saibas que nom o és, que nunca o foches e que quiçais e que talvez nunca deveras sê-lo. Porém Ser, descobrir-se a um mesmo, custa moito esforço e quiçais seja tempo perdido na civilizaçom do progresso aquilo do quem somos, de onde vimos e para onde imos. Porque na civilizaçom nom se pode perder o tempo, como moito matá-lo com máquinas. Porque o tempo som denários, os trinta denários da nossa traiçom que remataremos volvendo com juros. Mamai, tinhas razom. O tempo nom se perde, perde-se a dignidade e a humanidade e nós, mamai, sempre vivemos com as orelhas gachas e rindo as troças e brincadeiras dos godos. Nom serve de nada fazer-se a vítima quando todos queremos ser verdugo. Colher um saltom e arrincar-lhe as pernas e í-lo diseccionando com meticulosidade é singelo ou era-o quando ainda havia saltons. Pissar umha formiga ou deixar morrer de fame e inaniçom umha cultura tamém. Moito mais singelo que renunciar as nossas comodidades, todas necessárias até que umhas novas as substituam. Moito mais do que botar-nos às costas umha tonelada ou pegar um tiro a um gigante coma os davices que loitárom contra os filisteus, os que logo vinhérom para A Purreira metidos no pelelho de maragatos.

O progresso, mamai, é subtil e até parece inodoro, incoloro e insípido, coma os porcos que andam de pé, porque o ruído fai cega a pituitária e nom deixa palpar o fedor a carniça e a carniçaria. A civilizaçom do progresso tem sumidoiros, jerarquia, pulcreça, orde... e, sobretodo, liberdades. As palavras formosas devem fixar-se em sloganes para já que nom existem ao menos nom esquecê-las e guardá-las coma os lobos e as rás dos pretéritos séculos em museus fóssis. A favor das Liberdades e contra o terrorismo na sociedade do progresso. Liberdade, liberdade de mercado, liberdade de expressom, liberdade de passo, liberdade para morrer de fame, liberdade para torturar, democracia orgánica, inorgánica e desorgánica, insípida, estúpida, hipócrita ou enferma. É o que tenhem os sloganes, mamai Purreira, que combinam com qualquer cousa, agá radical, terrorismo e violência e traje, page e garage.

Nom é o mesmo a violência livre, que defende a liberdade lembrando-nos que pequena é, o que os nossos avôs arredistas chamavam terrorismo de estado. A violência livre pode matar ou deixar morrer, é boa porque é progresso, futuro, em definitiva FREEDOM; o terrorismo da violência verbal radical é mau, porque é molesto ouvir os terroríficos radicais na nossa gastada e incompreensível língua, face a doçura metálica do falar da civilizaçom do futuro e os godos, sob a sua concha, agocham as suas gadoupas assassinas protegendo-nos de ter que Ser, oferecendo-nos ser como é devido para assí melhor viver na Terra Ancha em paz, porque «a guerra é a paz; a liberdade a escravitude e a ignoráncia a força». Só se pode servir à liberdade servindo ao progresso e a liberdade duns poucos, mamai, exige liberdade condicional para os moitos, que determina dia-a-dia a infalível, bem-pensante e grossa lei da oferta e da demanda. E os godos reclamam já a Purreira umha vez chegárom a Vila Santa da Estrela e de ali ao Faro, assí no-lo fam saber amavelmente desde os seus púlpitos quadrados de cores, a fábrica de autómatos bem-pensantes. O verdadeiro destino é o progresso e ti bem sabias, mamai, que quando nos mudamos nom esqueceriamos de todo, mas cumpririamos com o destino e o nosso destino e o viver das toupas, cegas por vontade consetuidinária e secular para melhor ser, porque as toupas nom queriam que lhes chamassem ratas e renunciando ao que eram ceivárom ao vento a peste de ser ratas e morárom na terra, onde fôrom chamadas ratas de terra. Nessa Terra em que durme papai Sebastião que nunca voltará de Alcaçar-Quívir porque umha mesma guerra nom pode delegar-se noutros coma o nosso governo, como moito deixar que os pobres loitem para os ricos; umha mesma guerra nom se deve perder duas vezes se é que é possível perder umha guerra duas vezes como lhe aconteceu a Napoleom, ganhá-la perdendo como lhe aconteceu ao NSDAP, ou perdê-la ganhando como lhe aconteceu ao proletariado russo e chino.

Nom sei mamai, hoje, quando vejo desde a janela em que che escrevo este parque de Vila Santa da Estrela em que me topo, longe da Purreira, perto do campo das estrelas (com a derradeira chantada sobre a minha língua) semelha-me já mesmo que ti já nom és mais do que querem que sejas é que todos os nomes e vozes do passado som ecos apagados dum sonho, formoso, mais sonho ao fim e ao cabo. Aqui cheira a rosa, a rosa díez de vivar, e já me parece que na civilizaçom do futuro, a goda ou a requeté, será possível adivinhar o olor da liberdade e cheirando-a trabalharemos contentes coidando que todos pertencemos a umha mesma grande família onde as ovelhas brancas trabalham para as negras e onde os quijotes e sanchos, os pedrinhos e ranholas podam descansar em paz no nom lugar. Na u-topia. En la Purrera Goda y monolingüe.

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3 comentários:

Anónimo disse...

" De todas as ilusions, a mais perigosa consiste en pensar que non existe senon unha soa realidade". Paul Watzlawick.


Vivimos no mellor dos mundos posibles, a xente afirma. A premisa perversa sobre a que se asenta o pensamento unico e a alienacion. A xente non se pregunta, ¿ estamos no mellor dos mundos posibles?, para qué levar a cabo esta sinxela reflexion propia dun "ser pensante" cun minimo de dignidade ao ver a morte cos seus multiples rostros campando a duas cuartas dos seus pes, non compensa deria o outro, se se atopan con alguen suplicando axuda ante os seus ollos, procuran apartarse e non tocalo, porque saben que estamos no mellor dos mundos posibles e seguramente non se pode facer nada, iso non e un problema porque no mellor dos mundos posibles o que deberia ser un problema xa non e un problema.
A xente neste mundo que é o mellor dos posibles, por suposto é feliz; feliz ao xeito do universo metaforico huxleriano, onde os individuos nacen de incuvadoras nas que se lles inculca que deben a amar o seu traballo, non perturbar a orde social e ser simplemente felices, mais nesa lucida metafora existia unha reserva chamada " dos salvaxes", xente que pensaba por si mesma que cuestionaba a felicidade alienada dese outro mundo civilizado.Eran os pailans, os que debian morrer e non morrian, eran a risa dos civilizados por negarse a aceptar a sua felicidade.
Venme agora isto á cabeza lendo este relato, vendo aos godos na sua felicidade aparente, no seu mellor dos munds felices, rinse dos salvaxes, dos salvaxes purreiráns, da sua cultura atrasada, da sua infelicidade por ver morrer aos seus vellos sen relevo.
Ven sei Purreira que mil veces te han vir camelar coas suas apocemas empezonhadas de falso progreso e benestar,ben sei que han querer acabar contigo e so uns poucos han ollar pra ti, comigo podes contar, asegurocho.


Gutxi,purreirán e salvaxe.

AFP disse...

Concordo em geral com todo o que dis. Eles vendem a sociedade do bem-estar, a qual estám liquidando no entanto, como a sociedade perfeita por cima do bem e do mal onde só hai liberdades (olho! nom liberdaade real apenas aparente) e onde os poucos se acham felices servindo aos moitos sem se decatarem. Quanto à fame, às guerras e ao expólio do planeta e dos povos no primeiro mundo os meios educativos e de comunicaçom, o chamado por Iñaki Gil de San Vicente binómio político-militar, tem resolto a questom criando umha configuraçom social hipócrita, de redes abertas (sobretodo nas cidades) onde nom hai associacionismo nem apenas movimentos sociais, onde a televisom mata o tempo livre e de autoformaçom e pensamento, onde nom se conhece nem o vizinho de enfrente... nesta sociedade desumanizada enquadra-se aquilo de "quando vinhérom polos comunistas nom protestei, porque eu nom era comunista, etc".
O indivíduo, anuladas as suas possibilidades de autoalimentar-se e de informar-se (informam-no ou mais bem desinforma-no) fica a mercede do sistema para completar-se um perverso ciclo de alheaçom do que falava Pratkanis onde os meios vam reduzindo os conteúdos para chegar a umha massa cada vez maior, mais ignorante e, portanto, maximizar os benefícios enquanto se obtenhem réditos políticos que estreitam ainda mais o binómio político-militat.
Assí, enquanto a esquerda fica praticamente morta na Europa, e neste sentido é urgente umha escisom no BNG para constituir umha esquerda arredista com vocaçom e capacidade de entrar nas instituiçons burguesas e transformá-las, a direita e o neofascismo neoliberal sustentam os piares do Imperialismo e mesmo quando hai umha crise provocada polo próprio Imperialismo, na sua fase neoliberal, a popuçom recrudesce o seu apoio ao neofascismo e, neste sentido, os factos da Suíça (agressons a estrangeiros), da Itália (berlusconi) ou de Compostela com Galicia bilingüe e Rosa Díez som sintomáticos.

Se podes olha estes vídeos do 8-F, vas-te escaralhar por vezes, mas a ideologia, a profunda demagodia que produze este analfabetismo funcional nestas pessoas da Galiza é um facto grave e umha série ameaça para Galiza já nom apenas como cultura ou povo diferenciado, mas já como sociedade. Umha morea de ovelhas nom é umha sociedade é um rabanho. Na sociedade e na democracia, nom nesta deedocracia, nom se pode ser pessoa, é exigido sê-lo.

Umha aperta irmandinha,

NÓS SÓS!

AFP disse...

Olha tamém isto:

http://veigasofviana.blogspot.com/

O BAV tem que actuar