Palavras novas e velhas

domingo, 20 de julho de 2008

Relatos de vidas (I): Si vales ego valeo

Si vales ego valeo

Aos meus devanceiros, emigrantes. Pois, antes ou despois todos emigramos para um ou outro além.

A dona Otília vivia alá perto do curso do Minho, sem mais companhia que a dumhas galinhas e umhas muras de ribeira que lhe davam vinho e auga-ardente para quentar a pelica. A dona Otília fora boa moça de solteira, campava tanto que moitos quigeram casar-se com ela por aquel entom. Porém gostou duns e outros e rematou casando co Aquilino da Regouxa, que fazia mais pola beba que pola medra da casa. Coitada, rematou os seus dias coidando dum pelelho da cor do unto ranço.
A dona Ofélia tivera um filho, encarnado coma um cravo, moi agudo e formal. A Otília ia enrugando coma um figo e o filho fazendo-se home e mudando o branco da pele infantil pola cor dos ribeiraos, a cor que o sol lhe dá aos filhos do sacho, a eixada e o legom. Um dia foi o filho cabo da mai e dixo-lhe, Mamai, vou-me polo mundo.
A mai mantivo o silêncio que só os anos e o amor aprendem a guardar e encolheu as ombreiras, ao fim já era um home e a casa nom dava de si. O Miguelinho havia querer casar tarde ou cedo e com aquela miséria... a que mulher lhe ia falar?
Marchou num entroido. Namais co posto. O pai aginha lhe deixou de dar trabalho a dona Otília; deu-lhe descanso eterno ao vinho; e esta fixo-se arresponsadora, co qual sacava uns pezinhos que lhe permitiam ao menos beliscar algumha bola de milho e cevar um porquinho, do qual tinha que vender os xamons para mercar a ceva do ano seguinte. Véu um dia o cura, coa sotaina levantada por nom embulheirá-la na lama da inánia eira da Otília. Ao velo a velha já cavilava em que lhe viria rifar por fazer pautos co demo como murmuravam as línguas ociosas do lugar.
Tem carta, dixo.
Na tábua do peito começou a palpitar-lhe algo que cria que tamém partira para as Américas. Era do Miguelinho:
Querida e inolvidable madre:
Espero ke al recivo desta carta os encontreis bien de salú, yo voy tirando. Quisiera que vos estuvieras aqui, comigo, para poder allar tanta dicha como albergo. Me caso madre. Por eso le mando este retrato de mi y mi esposa para que nunca olvide a su higo. Ma cuerdo mucho de aquello, de las riveiras y de todos los que alli dejé hace lla tanto tiempo. Su higo que no la olvida.
Chegárom ainda mais cartas, e a velhinha alá convenceu ao cura para que lhes desse resposta, guardando-as todas na caixinha da memória e o fardo da ausência esmagava-lhe a alma.
Um dia de entroido houvera que suspender todas as brincadeiras e esse ano os mecos nom botaram pé dos armários. Na casa da meiga havia mulheres na porta de preto, choravam coma Verónicas. O cura rociava a caixa com auga bendita.
-Maria mira que triste nom 'tir' quem mire por um 'cando' morre.
Ia numha caixinha de pinheiro e a grei acompanhando o cadáver num dia coma de verao. Na casinha morria a derradeira candeia a Santo António acarom dum retrato da cor do carvom pola acçom de tantas velas, tantos responsos e tantas esperanças consumidas.

Miguel continuou mandando correspondência, mas nom recebeu mais resposta que a do cura:
Bienquerido hermano:
Con un dolor inmenso y acompañándolo en el sentimiento le comunico que a día de hoy su madre ha traspasado las miserias de este valle de lágrimas, incorporándose a la diestra del Excelso en virtud de su ejemplar conducta y su devota existencia.
Lo saluda consternado:
Xxxxxxx
Miguelom fixo-se h de golpe e perdeu a última esperança de voltar um dia aos soutos, ribeiras e carvalheiras que deixara um dia sendo moço. Agora já nom precisava peitear-se e estava carregado de filhos. Nom sabia dizer se fora feliz por tir mais. A soidade apoucava-o e na tábua do peito sentia um baleiro: o seu coraçom quedara m naquinho de terra, nuns aciprestes que velavam por umhas lousas de pedra. O retrato da sua Terra ficava preto polo tempo. E o Miguel morreu coma um cam, longe da casa.

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